Entrevista com Bráulio Dias: É preciso uma política pública para o uso do fogo.
Braulio Dias é professor do Departamento de Ecologia do Instituto de Ciências Biológicas da Universidade de Brasília (UnB). Posto que reassumiu, depois de cinco anos como secretário executivo da Convenção sobre Diversidade Biológica das Nações Unidas (CDB), entre fevereiro de 2012 e fevereiro de 2017.
Especialista em ecologia do fogo no Cerrado há mais de 30 anos, ele vem colaborando com o Ministério do Meio Ambiente no projeto de lei sobre a Política Nacional de Manejo Integrado do Fogo, cujo texto já está em fase final de formatação.
De sua gestão na CDB, Braulio faz um balanço positivo. Acha que a convenção vem avançando, com forte adesão dos países membros das Nações Unidas. Inclusive de agências norte-americanas federais, a despeito de os Estados Unidos não serem membro.
Braulio comemora o fato de sua gestão ter conseguido que mais de 140 países submetessem à Convenção estratégias nacionais e planos de ação de biodiversidade atualizadas. Inclusive o Brasil, que enviou a sua no final do ano passado. Outro marco importante foi a entrada em vigor do Protocolo de Nagoia sobre Acesso a Recursos Genéticos e Repartição de Benefícios.
Ele destaca como proeminente o desempenho do PrevFogo e ICMBio, que têm tido sucesso na redução dos incêndios de áreas de vegetação nativa de todo o Brasil e na implementação de uma agenda moderna de manejo do fogo. “O manejo integrado do fogo é uma agenda nova. Difícil. Muita gente não entende. Mesmo dentro dos próprios órgãos públicos”, admite Braulio.
Fogo como parte do ecossistema
Segundo Braulio, pesquisas brasileiras e estrangeiras têm mostrado que muitos ecossistemas, em especial as savanas são bastante inflamáveis. Sobretudo o Cerrado, o Pampa, o Pantanal Matogrossense e a Caatinga, que têm estação de seca longa e vegetação graminosa. E que o uso prescrito e controlado do fogo aumenta a heterogeneidade das paisagens e não deixa acumular biomassa, reduzindo assim o risco de incêndios de grandes proporções.
“A conclusão é que o fogo é sim admissível como parte do manejo de ecossistemas naturais e deve continuar sendo cada vez mais”, adverte o professor. No caso do Cerrado, por exemplo, o fogo é parte de sua ecologia desde que o Cerrado existe há milhões de anos.
“A conclusão é que o fogo é sim admissível como parte do manejo de ecossistemas naturais e deve continuar sendo cada vez mais”, adverte o professor. No caso do Cerrado, por exemplo, o fogo é parte de sua ecologia desde que o Cerrado existe há milhões de anos.
Braulio explica que análise de partículas de carbono encontradas no sedimento de lagoas da região mostram que houve ocorrência do fogo, pelo menos, nos últimos 30 mil anos. E que o uso do fogo por populações indígenas acompanha esse bioma há milhares de anos. O mesmo acontece na Caatinga, nos Pampas, no Pantanal e nas áreas de campinas na Amazônia.
Além do uso cultural, há evidencias também de uma quantidade grande de espécies de animais e plantas que desenvolveram estratégias para conviver com o fogo, tanto para se proteger do fogo como para se beneficiar do fogo. No Cerrado, por exemplo, boa parte das espécies arbóreas tem casca corticosa, excelente isolante térmico, que evita que a árvore morra no contato com altas temperaturas.
Com vários artigos publicados e orientação de dissertações de mestrado e teses de doutorado sobre a ecologia do fogo no Cerrado, Braulio explica que no Cerrado o próprio solo funciona como proteção contra o fogo para plantas e animais. Por acumular pouca matéria orgânica, o solo do Cerrado é um mal transmissor de calor. “Durante uma queimada, pode haver na superfície mil graus Célsius de temperatura, mas, a apenas poucos centímetros abaixo da superfície do solo, o aumento será irrisório: poucos graus”, explica.
E os animais que ali abitam se adaptam a essas condições. Grande parte da fauna do Cerrado, como tamanduás, tatus, corujas buraqueiras, várias espécies de lagartos e até abelhas, se refugiam no solo. Outros animais aproveitam as queimadas para caçar. O carcará, por exemplo, quando percebe uma fumaça, segue imediatamente para o local, à espreita de presas acuadas. Depois do fogo, a rebrota atrai espécies como o veado campeiro, que ali encontra comida.
Enfim, vários estudos de ecologia do fogo têm mostrado a complexidade e a sofisticação das respostas das plantas e dos animais ao fogo e que nem sempre é uma resposta negativa. Há, sim, plantas e animais muito impactados dependendo da época e intensidade do fogo. Mas muitas plantas dependem do fogo para florescer e para dispersar suas sementes.
Tudo depende do tipo de ecossistema. Os ecossistemas com vegetação mais aberta, com predominância de capins e outras plantas herbáceas, estão mais adaptados. Os florestais, são mais sensíveis, mas em geral são mais protegidos, já que acumulam mais umidade dentro deles, dificultando a propagação das queimadas.
Mudança do clima
Mesmo diante do fato de as queimadas estarem entre as maiores fontes de emissões de gases de efeito estufa do Brasil, o professor Braulio ainda assim argumenta que a supressão do fogo tem sido demonstrada no mundo inteiro como não sendo a melhor solução. Para ele, queimas restritas em mosaico e em frequência intermediária diminuem as emissões totais de gases de efeito estufa por reduzir a ocorrência de grandes incêndios de maior intensidade.
E dá o exemplo da Austrália, país muito mais árido, cujo governo reconhece a importância do fogo como prestador de serviços ecossistêmicos. Hoje, eles pagam créditos de carbono aos povos aborígenes para que retomem suas práticas tradicionais de uso do fogo.
Tradicionalmente, eles queimavam pequenas áreas ao longo do ano. Tratam-se de povos nômades. Eles queimavam a paisagem, formando um mosaico de áreas queimadas há mais tempo, menos tempo, etc. Tal prática acabava por reduzir o risco de grandes incêndios. “No balanço final, a emissão de gases do efeito estufa são menores”, afirma Braulio.
Mas o professor está apreensivo com a vulnerabilidade dos biomas brasileiros em relação à mudança do clima. Segundo ele, a situação vai se complicar.
A mudança do clima está produzindo temperaturas mais altas. Verões mais quentes. Períodos secos mais longos. Sabemos que as regiões áridas ficarão mais áridas ainda, causando uma série de problemas. Exemplo disso, segundo Braulio, são as áreas brejosas que acumulam turfa no solo. Se elas perderem a umidade, se tornarão um perigoso disseminador de incêndio de solo, “difíceis de serem controlados”, alerta. Também os riscos de incêndios florestais de copa aumentarão bastantes na Mata Atlântica e na Floresta Amazônica.
Projeto de Lei sobre a Política Nacional de Manejo Integrado do Fogo
Sobre o Projeto de Lei da Política Nacional de Manejo Integrado do Fogo, Braulio não tem dúvida que será um grande avanço. Ele conta das dificuldades causadas pelo antigo Código Florestal, que vetava práticas com fogo.
No entanto, durante sua revisão, em 2012, os especialistas conseguiram sensibilizar os legisladores para atualizar o capítulo que trata do fogo (Art. 40 e 43). “Foi um ganho conseguirmos flexibilizar essa proibição. E vimos que era necessária uma lei específica que orientasse o manejo do fogo”, avalia.
“Concordo com boa parte do texto atual do PL do manejo do fogo, mas encaminhei uma série de sugestões para seu aperfeiçoamento e penso que ainda é possível aprofundar no que tange às questões da mudança do clima”, avalia Braulio. Segundo ele, a própria lei 12.651/12, que substituiu o Código Florestal, já pedia que fossem observados os riscos futuros. “A cada ano, os biomas estão cada vez mais vulneráveis”, afirma Braulio.
De qualquer forma Braulio conhece os limites das leis. Sabe também que uma lei muito dura pode engessar as atividades no campo. “Sei que há uso excessivo de queimadas. Nas áreas de pastagens, por exemplo, queima-se todo ano”, avalia. Mas o outro extremo é contraprodutivo: “Proibir tudo, como o antigo código florestal mandava, é inviável, fica caríssimo, e aumenta o risco de danos à fauna e flora.
Tem de se achar o meio termo. Mas esse meio termo tem de ser ajustado para cada tipo de vegetação e para as condições de cada local. Não dá para definir todos estes detalhes em lei. Principalmente, num pais continental como o Brasil, com inúmeros biomas diferentes. Mesmo dentro do Cerrado ou Caatinga há muitos tipos de ecossistemas”, explica. Cada unidade de conservação, por exemplo, terá que definir seus planos específicos de manejo do fogo, observando obviamente as diretrizes gerais estabelecidas em lei.
Linhas de Transmissão
A nova lei também afetará alguns setores de infraestrutura. O PL prevê na Seção V a proibição de queima na faixa de domínio das estradas e nas faixas de domínio das linhas de transmissão de energia e em redor dos aeroportos. “Mas se o fogo for proibido como será possível controlar a biomassa nessas áreas e evitar o aumento do risco de incêndio? Essas faixas podem se estender por milhares de quilômetros”, questiona Braulio.
Há outras técnicas alternativas de controle da biomassa. Mas Braulio acha que nenhuma é tão eficiente e barata como o uso do fogo controlado: “Um trator que fizesse essa manutenção, causaria muitos impactos. Herbicidas são bastante eficientes, mas onerariam o empreendimento e contaminam o meio ambiente. Outra opção é a possibilidade de deixar ali animais domesticados pastando. De fato, eles conseguiriam deixar a vegetação herbácea sob controle. Essa opção poderia funcionar ao redor de aeroportos, por exemplo. Mas cabras e ovelhas não seriam aceitas dentro de uma unidade de conservação e na beira das estradas podem representar um perigo para os veículos. Cada caso é um caso.”
“Então, uma das minhas sugestões para a nova lei é que se deixe aberta a possibilidade de uso do fogo controlado, desde que o gestor da área entenda que essa é a melhor opção para manter sob controle a biomassa, evitando riscos de incêndios”, conclui.